Filosofia do Design, parte XLIX – Vício, paixão e Design
*texto originalmente publicado no Design Simples.
O que há entre o vício e a paixão? Projeto. E se considerarmos Design enquanto projeto, corremos o risco de confundir paixão e vício. Quando projetamos alguma coisa, estamos apaixonados pela possibilidade de satisfazer determinada necessidade humana. Então o vício começa e se sustenta com essa paixão por uma satisfação que nunca é sanada por completo. A agonia, pois, faz parte da paixão e do vício. E o designer acaba supondo que pode solucionar tal agonia e, com isso, se livrar da culpa de um vício apaixonado pela satisfação.
Isso pode ser ilustrado com o mito da Torre de Babel. Parte-se de uma conspiração do povo babeliano que, indignados contra a infelicidade predominante neste mundo, resolveram construir uma torre gigante para acertarem as contas com Deus. Afinal, se Ele é perfeito e vive no céu/paraíso, por que Seus filhos têm uma vida tão precária e sem sentido? Tudo indicava que os babelianos eram vítimas de uma grande injustiça divina.
O povo então se uniu apaixonadamente para desenvolver o projeto da torre colossal. Porém, conforme descreve Pondé (2010), os jovens descobriram que seus pais e avós não conseguiriam subir tantos degraus até o paraíso. Logo, a promessa da eterna perfeição só pertencia aos jovens – a busca pela saúde e pela boa alimentação era a solução para velhas dúvidas existenciais. Evidentemente, um novo tipo de dúvida se instaurava: o que fazer quando alcançarmos a perfeição? “Mas remédios novos nos ajudaram a calar essa angústia mal-educada” (op. cit., p. 162).
No fim, quando a torre ficou pronta, todos subiram de uma só vez, feito viciados desesperados. Mas ao invés do paraíso, alcançaram o inferno: a torre ruiu e todos morreram. Este mito da pretensão humana de criar um paraíso com as próprias mãos também é retratado, em um contexto mais atual, no filme Requiem for a Dream (Daren Aronofsky, 2000). Em linhas gerais, os personagens são aprisionados, sob diferentes formas de vícios, à angústia existencial decorrente de um mundo ideal que nunca chega.
No entanto, ao contrário da maioria das críticas (como essa), não achei que o filme tenha sido uma crítica ao submundo do consumo de drogas e à alienação cotidiana. Em primeiro lugar, a palavra réquiem significa um tipo de prece ou missa composta para um funeral. Em sua origem latina, trata-se da expressão requiem aeternam dona eis, que significa “dai-lhes o repouso eterno”. Ou seja, o título do filme sugere uma espécie de homenagem ou luto aos sonhos que nunca morrem, isto é, nossas paixões eternas.
“Ao longo do filme, Aronofsky retrata-nos um percurso abismal destas quatro personagens que vão se autodestruindo até não terem mais nada além do vício” (Portal Cinema) – discordo. Os protagonistas de fato perdem tudo, exceto seus sonhos. Eles não são escravos do vício, mas antes são escravos de seus sonhos.
E é isso que nos torna humanos: projetar uma forma de alcançar nossos sonhos e paixões, ainda que essa busca seja também um vício.
O sonho de um paraíso babeliano nada mais é do que um vício humano por uma vida mais digna, saudável, privilegiada e feliz. Se os mitos são, nas palavras de Pondé (2010, p. 157), “narrativas ancestrais sobre maldições eternas”, acredito que o Design enquanto projeto é um mito movido pela culpa de uma paixão nunca saciada: os nossos sonhos e ideais. E assim como a comunicação em geral, de acordo com Flusser (2007), o Design surge graças à intenção de atribuir significado ao ser-para-a-morte, isto é, ao inevitável vício sem sentido que é viver.
Essa ideia do Design como sendo um mal-estar entre os vícios e paixões pode parecer romântica, mas na verdade contraria a crença (esta sim romântica) de que o designer deve sanar necessidades. Talvez seja esta a nossa intenção, mas não nossa finalidade. Trata-se de uma comédia divina, tal como sugeria Dante Alighieri, onde estamos viciados em uma paixão insaciável que, por sua vez, nos permite continuar sendo eternos sonhadores.
“Life is a waterfall, we’re one in the river and one again after the fall. Swimming through the void we hear the word, we lose ourselves but we find it all. Cause we are the ones that want to play, always want to go but you never want to stay. And we are the ones that want to choose, always want to play but you never want to lose” (Aerials, System of a Down).